Se a ética não parte do afeto que você sente, então
ela é baseada em um equilíbrio instável e pode desmoronar a qualquer momento.
Tomemos dois diferentes tipos de comportamentos como
referência, o de um psicopata e de um indivíduo numa fase egóica. O primeiro,
conhece as regras de alguma ética social e pode até viver relativamente bem em
sociedade como um "ator", representando os comportamentos que o fazem
ser aceitos em sociedade. Ele pode ter uma outra vida privada em que pratica as
maiores atrocidades que alguém possa imaginar contra a vida e dignidade alheia.
No entanto, fazer mal ao outro não o afeta. Por outro lado, existem indivíduos
que vivem frequentemente numa fase egóica, em que só aquilo que o afeta lhe
interessa. Inicialmente, do ponto de vista prático
e superficial, seu comportamento é quase igual ao do psicopata, mas difere
deste por várias razões, um ato egóico na idade adulta é muitas vezes público,
nem sempre é cruel ou exagerado, e na maioria das vezes, é algo pontual na
história de vida de um indivíduo. Se ele estiver vivendo de fato a idade
adulta, acessos a traços comportamentais típicos da idade infantil serão
disparados por fatores externos. Enquanto que a psicopatia é uma doença mental
que acompanha a identidade do indivíduo. A diferença quanto ao grau de crueldade
é bem relativa, mas podemos afirmar sem qualquer sombra de dúvida que não
existe um ato que um indivíduo psicopata (tal como um serial killer) possa cometer em que um indivíduo considerado
não-psicopata também não cometa. Tudo depende das circunstâncias e de seu
autocontrole. A história nos mostra que quando um sujeito egocêntrico chega ao
poder, é capaz das maiores atrocidades sem qualquer remorso. O que separa o
indivíduo egocêntrico dos seus atos de crueldade é a brutalidade da lei e da
força de indivíduos que o possam impedir. A fase egóica é uma fase muito
presente nos primeiros anos da infância. Não é à toa que as crianças são capazes
de atos cruéis com seus pares. O que separa uma criança de atos com alto nível
de crueldade? A ignorância, a ingenuidade e o controle por parte dos adultos.
No entanto, algumas situações sociais levam os adultos a revisitarem seu
estágio infantil, tais como, o abandono, o ciúmes, a paixão, etc. Quando a
falta de afeto ocorre na infância, traumas podem ocorrer e atos semelhantes
ressuscitam em nós comportamentos egóicos. Nem sempre este estado nos leva a
cometer crueldade, porém não espere que alguém que esteja em tal estado se
coloque no lugar do outro, sendo assim, esta pessoa poderá cometer atos que não
leve em conta o sentimento alheio. O tamanho de sua cegueira afetiva quanto ao
outro é proporcional ao tamanho do trauma e de seu autocontrole.
Um indivíduo com boa saúde mental é capaz de ser
ético, pois é afetuoso e se coloca no lugar do outro, exerce sua empatia. Bem
ou mal, lidamos com aquilo que nos afeta, gerenciamos nossa vida em torno
disso. Administramos nossa vida de forma que minimizemos nossa dor e sofrimento
em nós e nos outros, mas o afeto no outro, antes de tudo é algo que me afeta,
pois a dor do outro me incomoda. Portanto, o afeto é um ótimo candidato para se
fundamentar toda a ética. Seria uma forma de proteger a nós mesmos e aos outros.
Se um ato direcionado a mim não me afeta, então este não teria reprovação
alguma, mas se eu direciono este mesmo ato ao outro e isto o afeta, então isso
deveria me afetar também. Não seria este um fundamento viável aos atos éticos?
Assim, não estaríamos presos as regras de uma moral, uma educação ética baseada
nesta perspectiva seria focada em ensinarmos nossos filhos a se importarem com
os outros, com os sentimentos alheios tanto quanto os sentimentos próprios e
nada mais. Isso envolve estimular os jovens a refletirem sobre suas próprias
ações e suas consequências. Algo que não é trivial, mas todo pai e mãe deveria
enfrentar este desafio de frente e corajosamente. Ensinar a amar ao próximo
como a ti mesmo (uma simetria entre o outro e o self – o eu) é tão importante quanto a autorreflexão sobre a
consequência de seus próprios atos.
Ensinar através de regras produz variados e enormes
problemas:
(a) Quando as regras e leis, sem carga afetiva, são
impostas sem qualquer tipo de reflexão críticas sobre elas, formamos pessoas
submissas e dependentes da autoridade alheia para agir. Compromete qualquer
educação que estimule a autonomia, a autoestima e a autoconfiança.
(b) Quando se forma o indivíduo através de regras e
leis e se estimula a reflexão de tais regras e leis, corremos o risco de formar
indivíduos que discutem a sintaxe e a lei como objeto, mas se esquecem de
refletir sobre seus próprios atos e suas consequências afetivas. Mesmo
relativizando a sua interpretação, o juízo sobre meus atos é dado pela
avaliação de uma lei que é a minha principal referência, ou seja, temos um
agente externo como referência. Não confiamos em nossa própria avaliação.
A existência de regras e leis morais é um atestado de
nossa incompetência em se construir uma educação ética centrada no afeto
próprio com empatia, e que previna ações pontuais exageradas fruto de acesso a
estados traumáticos, ou seja, que nos ensine a lidar com a dor, a frustração e
as decepções. As leis deveriam ser aplicadas apenas a indivíduos com
diagnóstico de psicopatias graves que inviabilizariam a vida em sociedade.
O cristianismo (e outras
religiões) é uma máquina de produção de hábitos hipócritas.
É comum ver pais cristãos e outros religiosos
ensinarem seus filhos a fazerem ou não fazerem certo ato porque certo
mandamento (que expressa a vontade de Deus) o proíbe. Alguns acreditam que
podem ensinar de forma mais amorosa ao dizer que tal coisa deixará Jesus ou
Deus triste ou magoado, quando deveriam dizer que tal ato magoaria os pais, e
com o tempo deveriam estimular seus filhos, desde os primeiros anos em que
adquirem desenvoltura na fala, a se colocarem no lugar do outro pois assim
tomariam um ato contra o outro como um ato contra si mesmos.
Assim os cristãos estimulam a se construir uma
educação ética descentrada do afeto próprio com empatia com sua ética
teocêntrica. Tal postura entra em choque direto com qualquer perspectiva
humanista em que se estimula a autonomia e o equilíbrio interno. Sem o
encorajamento a um autoconhecimento afetivo, não somos levados a buscar uma
autoconsciência de nossos atos de maneira mais abrangente e plena e muito menos
de suas consequências. Discursamos de uma maneira que não condiz com nossos
atos porque no campo da fala, impera as regras compartilhadas e impostas por um
grupo social, e segui-las é quase condição sine qua non para ser
afetivamente aceito pelo grupo (mas não necessariamente pelos indivíduos).
Porém, no campo das ações e falas não-refletidas ou impulsivas regem as forças
que nos afetam, dos desejos e carências, muitas vezes reprimidas pelas regras
imperativas e impostas. São momentos que nos expressamos para além das
aparências e do controle moral. Quanto mais o cristianismo reprime e constrói
regras deslocadas da base afetiva no self (ou seja, no eu), mais veremos uma distância entre intenção e
gesto, ou seja, hipocrisia.