sábado, 8 de março de 2014

Por uma Ética com Base Afetiva no Self e a Religião Como Máquina de Produção de Hipocrisias

Observação: O texto a seguir é de autoria de um grande amigo, Frederik dos Santos, que em sua generosidade, cedeu o texto para ser publicado no blog. Enjoy!


Se a ética não parte do afeto que você sente, então ela é baseada em um equilíbrio instável e pode desmoronar a qualquer momento.
Tomemos dois diferentes tipos de comportamentos como referência, o de um psicopata e de um indivíduo numa fase egóica. O primeiro, conhece as regras de alguma ética social e pode até viver relativamente bem em sociedade como um "ator", representando os comportamentos que o fazem ser aceitos em sociedade. Ele pode ter uma outra vida privada em que pratica as maiores atrocidades que alguém possa imaginar contra a vida e dignidade alheia. No entanto, fazer mal ao outro não o afeta. Por outro lado, existem indivíduos que vivem frequentemente numa fase egóica, em que só aquilo que o afeta lhe interessa. Inicialmente, do ponto de vista prático e superficial, seu comportamento é quase igual ao do psicopata, mas difere deste por várias razões, um ato egóico na idade adulta é muitas vezes público, nem sempre é cruel ou exagerado, e na maioria das vezes, é algo pontual na história de vida de um indivíduo. Se ele estiver vivendo de fato a idade adulta, acessos a traços comportamentais típicos da idade infantil serão disparados por fatores externos. Enquanto que a psicopatia é uma doença mental que acompanha a identidade do indivíduo. A diferença quanto ao grau de crueldade é bem relativa, mas podemos afirmar sem qualquer sombra de dúvida que não existe um ato que um indivíduo psicopata (tal como um serial killer) possa cometer em que um indivíduo considerado não-psicopata também não cometa. Tudo depende das circunstâncias e de seu autocontrole. A história nos mostra que quando um sujeito egocêntrico chega ao poder, é capaz das maiores atrocidades sem qualquer remorso. O que separa o indivíduo egocêntrico dos seus atos de crueldade é a brutalidade da lei e da força de indivíduos que o possam impedir. A fase egóica é uma fase muito presente nos primeiros anos da infância. Não é à toa que as crianças são capazes de atos cruéis com seus pares. O que separa uma criança de atos com alto nível de crueldade? A ignorância, a ingenuidade e o controle por parte dos adultos. No entanto, algumas situações sociais levam os adultos a revisitarem seu estágio infantil, tais como, o abandono, o ciúmes, a paixão, etc. Quando a falta de afeto ocorre na infância, traumas podem ocorrer e atos semelhantes ressuscitam em nós comportamentos egóicos. Nem sempre este estado nos leva a cometer crueldade, porém não espere que alguém que esteja em tal estado se coloque no lugar do outro, sendo assim, esta pessoa poderá cometer atos que não leve em conta o sentimento alheio. O tamanho de sua cegueira afetiva quanto ao outro é proporcional ao tamanho do trauma e de seu autocontrole.

Um indivíduo com boa saúde mental é capaz de ser ético, pois é afetuoso e se coloca no lugar do outro, exerce sua empatia. Bem ou mal, lidamos com aquilo que nos afeta, gerenciamos nossa vida em torno disso. Administramos nossa vida de forma que minimizemos nossa dor e sofrimento em nós e nos outros, mas o afeto no outro, antes de tudo é algo que me afeta, pois a dor do outro me incomoda. Portanto, o afeto é um ótimo candidato para se fundamentar toda a ética. Seria uma forma de proteger a nós mesmos e aos outros. Se um ato direcionado a mim não me afeta, então este não teria reprovação alguma, mas se eu direciono este mesmo ato ao outro e isto o afeta, então isso deveria me afetar também. Não seria este um fundamento viável aos atos éticos? Assim, não estaríamos presos as regras de uma moral, uma educação ética baseada nesta perspectiva seria focada em ensinarmos nossos filhos a se importarem com os outros, com os sentimentos alheios tanto quanto os sentimentos próprios e nada mais. Isso envolve estimular os jovens a refletirem sobre suas próprias ações e suas consequências. Algo que não é trivial, mas todo pai e mãe deveria enfrentar este desafio de frente e corajosamente. Ensinar a amar ao próximo como a ti mesmo (uma simetria entre o outro e o self – o eu) é tão importante quanto a autorreflexão sobre a consequência de seus próprios atos.
Ensinar através de regras produz variados e enormes problemas:
(a) Quando as regras e leis, sem carga afetiva, são impostas sem qualquer tipo de reflexão críticas sobre elas, formamos pessoas submissas e dependentes da autoridade alheia para agir. Compromete qualquer educação que estimule a autonomia, a autoestima e a autoconfiança.
(b) Quando se forma o indivíduo através de regras e leis e se estimula a reflexão de tais regras e leis, corremos o risco de formar indivíduos que discutem a sintaxe e a lei como objeto, mas se esquecem de refletir sobre seus próprios atos e suas consequências afetivas. Mesmo relativizando a sua interpretação, o juízo sobre meus atos é dado pela avaliação de uma lei que é a minha principal referência, ou seja, temos um agente externo como referência. Não confiamos em nossa própria avaliação.
A existência de regras e leis morais é um atestado de nossa incompetência em se construir uma educação ética centrada no afeto próprio com empatia, e que previna ações pontuais exageradas fruto de acesso a estados traumáticos, ou seja, que nos ensine a lidar com a dor, a frustração e as decepções. As leis deveriam ser aplicadas apenas a indivíduos com diagnóstico de psicopatias graves que inviabilizariam a vida em sociedade.
O cristianismo (e outras religiões) é uma máquina de produção de hábitos hipócritas.
É comum ver pais cristãos e outros religiosos ensinarem seus filhos a fazerem ou não fazerem certo ato porque certo mandamento (que expressa a vontade de Deus) o proíbe. Alguns acreditam que podem ensinar de forma mais amorosa ao dizer que tal coisa deixará Jesus ou Deus triste ou magoado, quando deveriam dizer que tal ato magoaria os pais, e com o tempo deveriam estimular seus filhos, desde os primeiros anos em que adquirem desenvoltura na fala, a se colocarem no lugar do outro pois assim tomariam um ato contra o outro como um ato contra si mesmos.
Assim os cristãos estimulam a se construir uma educação ética descentrada do afeto próprio com empatia com sua ética teocêntrica. Tal postura entra em choque direto com qualquer perspectiva humanista em que se estimula a autonomia e o equilíbrio interno. Sem o encorajamento a um autoconhecimento afetivo, não somos levados a buscar uma autoconsciência de nossos atos de maneira mais abrangente e plena e muito menos de suas consequências. Discursamos de uma maneira que não condiz com nossos atos porque no campo da fala, impera as regras compartilhadas e impostas por um grupo social, e segui-las é quase condição sine qua non para ser afetivamente aceito pelo grupo (mas não necessariamente pelos indivíduos). Porém, no campo das ações e falas não-refletidas ou impulsivas regem as forças que nos afetam, dos desejos e carências, muitas vezes reprimidas pelas regras imperativas e impostas. São momentos que nos expressamos para além das aparências e do controle moral. Quanto mais o cristianismo reprime e constrói regras deslocadas da base afetiva no self (ou seja, no eu), mais veremos uma distância entre intenção e gesto, ou seja, hipocrisia.

3 comentários:

Débora disse...

Li seu texto, muito bom, porém não posso deixar de fazer algumas ressalvas. Gostei muito da comparação entre a psicopatia e a fase egóica, que infelizmente parece não ter fim,rs. Percebo que mesmo quando o indivíduo se coloca no lugar do outro, parece que o egoísmo é muito maior, a ponto de não permitir que eu me sensibilize a ponto de não fazer mal ao outro em detrimento do meu bem estar. Você se posicionou contra as regras, mas percebi que o problema não são as regras em si(até pq elas são necessárias para o funcionamento da sociedade), mas sim a falta de reflexão e critica sobre elas. Nisso eu concordo com você, afinal, o comportamento submisso apenas perpetua as barbaridades que vivemos todos os dias e que vemos na (falta) educação e outros campos da "civilidade". E é justamente a falta de pensamento critico que nos leva a essa falência moral e principalmente ética que estamos vivendo, o que de acordo com a psicanálise é o sintoma do mundo pós moderno. Quanto ao cristianismo, entendo a visão de que ele restringe, mas o que não restringe? A própria Bíblia no livro de Romanos (12:1) fala sobre o culto racional. O que eu entendo como culto racional? O mesmo posicionamento critico que devemos ter em relação as regras e em relação a sociedade, o que perpassa pela ética, independente de crenças religiosas ou filosóficas, caso contrário, corremos o risco de cair nos mesmos erros. Entendo que infelizmente muitos são os ditos cristãos que não vivem de acordo com os ensinamentos de Cristo, mas também me deparo com muitos outros religiosos, agnósticos, ateus que transpiram intolerância. Independente da filosofia que venhamos a defender, de certo modo todas elas tem regras e ao optarmos por acreditar nessas filosofias, nos submetemos a elas. Enfim, entendi a ideia do texto, mas creio que a ética baseada em afeto, pode ser um tanto quanto questionável.

Fred disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fred disse...

Muito obrigado por seus comentários minha amiga. :-) Você trouxe questionamentos importantes. Me permita fazer alguns comentários em relação a eles também. Primeiramente... vc diz: "Percebo que mesmo quando o indivíduo se coloca no lugar do outro, parece que o egoísmo é muito maior, a ponto de não permitir que eu me sensibilize a ponto de não fazer mal ao outro em detrimento do meu bem estar." Como assim "a ponto de não permitir que eu me sensibilize"? Não sei se entendi bem o que vc escreveu, mas desconfio que estamos definindo egoísmo de formas diferentes. Pra mim, o egoísta nunca se colocará no lugar do outro. O fato de querer bem ao outro por perceber que o bem no outro causará bem em mim não possui características egocêntricas, pelo menos na literatura que eu tenho tido contato até então. Se o indivíduo não é sensível, ele pode de fato se colocar no lugar do outro, mas sem empatia, não ajuda em nada do ponto de vista da perspectiva ética que estou defendendo. Eu não disse que se colocar no lugar do outro não é suficiente. A afetividade e a empatia devem estar presentes também.
Da mesma forma, pensamento crítico não é condição suficiente para se construir o tipo de ética q estou defendendo aqui (e devo reconhecer que não há quase nada de original no que estou defendendo). Sua crítica acima parece que não levou em consideração o que escrevi no item (b). Você acha que não se encontrava espírito crítico entre os nazistas? Ou na ditadura do proletariado em que milhões de pessoas foram exterminadas? A história social nos mostra que convicções ideológicas que colocam a doutrina acima da vida (tese defendida pelo cristianismo) pode trazer grandes desgraças mesmo entre grupos com espírito crítico, principalmente quando chegam ao poder.
Reafirmo que as regras e leis são necessárias sim, mas justamente porque temos um sistema ético-educacional desastroso. [Ia dizer falido, mas como nunca tivemos um que preste neste país, então nem sei te dizer se em algum momento da história chegamos a tentar construí-lo.] As regras e leis são, em parte, fruto de nossa incompetência em promover uma educação ética efetiva e afetiva, esse é o ponto!
Minha discussão não passou por restrição, então não entendi bem porque você tocou neste ponto.
Filosofia baseada em regras? Qual? Você está se referindo as regras cartesianas de condução do pensamento à verdade? Se é isso, não tem muito a ver com aquilo que estou falando. Não escrevi um tratado geral contra as regras do espírito humano, não quero extrapolar o texto para além do que está ali. Não vivemos sem normas, mas normas absolutas são bem diferentes de normas relativas. Ao se estabelecer o afeto e a empatia como fundamento para toda e qualquer ética eu mesmo estou normatizando as coisas, mas quem interpreta o que escrevi como um ataque a todas as normas, então está indo muito além do lugar em que pretendo ir com ele.
Abraços e tudo de bom! ;-)